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por Esther Vivas
São as festas de Natal, o momento de nos juntarmos, comer, celebrar e, sobretudo, comprar. O Natal é, também, a “festa” do consumo, já que em nenhum outro momento do ano, para beneplácito dos mercadores do capital, compramos tanto como agora. Comprar para presentear, para vestir, para esquecer ou, simplesmente, comprar por comprar.
O sistema capitalista precisa da sociedade de consumo para sobreviver, que alguém compre em massa e compulsivamente aquilo que se produz e, assim, o círculo “virtuoso”, ou “vicioso” conforme se olhe, do capital continue em movimento. Que o que compras seja útil ou necessário? Pouco importa. A questão é gastar, quanto mais melhor, para que uns poucos ganhem. E, assim, nos prometem que consumir nos vai fazer mais felizes, mas a felicidade nunca chega por aí.
Vendem-nos o trivial como imprescindível, o fútil como indispensável e criam-nos necessidades artificiais em permanência. Poderiam vocês viver sem um telefone móvel de última geração ou sem um televisor de plasma? E, sem mudar-se de roupa a cada temporada? Seguramente já não. A sociedade de consumo assim o impôs. Aliás, pouco importa a qualidade daquilo que compramos. Vendem-nos marcas, sonhos, sensações… da mão de desportistas famosos ou estrelas de Hollywood. E por alguns euros compramos ficticiamente a fama, o glamour ou a atração sexual que a publicidade se encarrega de nos servir diariamente em bandeja.
E se resisto a comprar, o que acontece? Os produtos fabricam-se para morrer sempre antes d tempo, para se estragarem, deixarem de funcionar, o que se conhece como obsolescência programada, para que assim tenhas que adquirir outros novo. De que serviriam umas meias sem buracos, umas lâmpadas que nunca se fundissem ou uma impressora que não se avariasse? Para nós e para o meio ambiente seria bom; para as empresas do capital, seria mau, muito mau. E é que a sociedade de consumo está pensada, como magnificamente retrata Cosima Dannoritzer no seu documentário, para ‘Comprar, deitar fora, comprar’, o título de seu último trabalho. Aqui só ganha quem vende.
Pouco importam as milhares de toneladas de resíduos que gera a cultura do “usar e deitar fora”, desperdícios tecnológicos, roupa, alimentos… que desaparecem depois da nossa porta, no lixo, ou que passam a engrossar as pilhas de lixo que se acumulam nos países do Sul, contaminando águas, terra e ameaçando a saúde de suas comunidades, enquanto nós assobiamos para o lado. Acostumámos-nos a viver sem ter em conta que habitamos um planeta finito, e o capitalismo se encarregou muito bem de nos habituar assim.
Associa-se progresso a sociedade de consumo, mas temos de nos perguntar para quê e para quem é este progresso, e às custas de quem. Se todo mundo consumisse como um/a cidadão/ã médio/a do Estado espanhol, precisaríamos de três planetas Terra para colmar a nossa voracidade, mas só temos um, enquanto noutros muitos países africanos apenas se consome o necessário para sobreviver. É também necessário recordar que, também, existe um Sul no Norte e um Norte no Sul.
Alguém dirá: “Se deixamos de comprar, a economia estancar-se-à e gerar-se-à mais desemprego”. A realidade é muito diferente da que nos contam. E é, precisamente, este sistema o que fomenta o desemprego, a pobreza e a precariedade, o que deslocaliza a indústria e a agricultura, o que explora a mão de obra, o que contamina o ecossistema e o que nos mergulhou numa crise económica, social e climática com enormes proporções. Se queremos trabalhar com dignidade, cuidar do nosso planeta, e garantir um bem-estar… faz falta outra economia, social e solidária. Satisfazer as nossas necessidades, tendo em conta que vivemos num mundo cheio, saturado, a ponto de explodir. Apostar na agricultura ecológica, nos serviços públicos, nas tarefas de cuidados… Trabalhar para viver e não viver para trabalhar. Porque ou mudamos, ou não sairemos desta crise “consumindo”, como nos querem fazer crer, muito pelo contrário, continuarão “nos consumindo”.
Outros também dirão “Há sociedade de consumo porque a gente quer consumir”. Mas, para além de nossa responsabilidade individual, ninguém, que eu saiba, tem escolhido neste tipo de sociedade onde nos calhou viver, pelo a mim não me perguntaram. É assim que nos têm educado na sociedade do “quanto mais melhor”. E não só nos têm impingido valores e práticas de um sistema que antepõe interesses particulares a necessidades colectivas, como o individualismo e a concorrência e competição que nos impõem desde muito pequenos/as, em determinados papeis em função de nosso género, na reprodução não só de uma estrutura capitalista mas também patriarcal.
Querem que compremos até morrer, como no filme ‘Dancem, dancem, malditos’ (1969) de Sidney Pollack, onde os participantes a um concurso de dança dançavam sem parar até a exaustão para o beneplácito de uns poucos abastados. Como dizia o apresentador da competição em frente aos últimos concorrentes a ponto de desfalecerem no final do filme: “Estes rapazes maravilhosos, estupendos… que continuam resistindo, continuam esperando, enquanto o relógio fatal continua o seu tic tac. Continua a dança do destino, a alucinante maratona segue e segue e segue. Até quando aguentarão? Vamos, um aplauso. Há que os animar. Aplaudam, aplaudam, aplaudam”. Viva o circo.
*Artigo publicado a 24/12/12 em blogs.publico.es
**Traduzido por Cassilda Pascoal.
Fonte: http://esthervivas.com/portugues/comprar-comprar-malditos/
Se salva os mercados e não o clima. Assim poderíamos resumir o que ocorreu na recém terminada 17ª Conferencia das Partes (COP 17) das Nações Unidas sobre Mudança Climática em Durban, África do Sul, celebrada de 28 de novembro a 10 de dezembro. A rápida resposta que governos e instituições internacionais deram ao estouro da crise econômica em 2008 resgatando bancos privados com dinheiro público contrasta com o imobilismo frente à mudança climática. Ainda que isto não deveria nos surpreender. Tanto em um caso como em outro ganham os mesmos: os mercados e seus governos cúmplices.
Na cúpula do clima de Durban os temas centrais foram dois: o futuro do Protocolo de Kioto, que conclui em 2012, e a capacidade para estabelecer mecanismos na redução de emissões; e colocação em marcha do Fundo Verde para o Clima, aprovado na cúpula anterior de Cancún, com o objetivo teórico de apoiar os países pobres na mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
Após Durban podemos afirmar que um segundo período do Protocolo de Kioto ficou vazio de conteúdo: se propõe uma ação real até 2020 e se rechaça qualquer tipo de instrumento que obrigue a redução de emissões. Assim o querem os representantes dos países más contaminantes com os Estados Unidos a frente que advogam por um acordo de reduções voluntarias e rechaçam qualquer tipo de mecanismo vinculante. Mas se o Protocolo de Kioto já era insuficiente, e ao aplicar-se evitava só 0,1º centígrados de aquecimento global, agora vamos de mal a pior.
Em relação ao Fundo Verde para o Clima, se em um primeiro momento os países ricos se comprometeram a aportar 30 bilhões de dólares em 2012 e 100 bilhões anuais para 2020, cifras que de todos modos se consideram insuficientes, a procedência destes fundos públicos esperam para serem definidos enquanto se abrem as portas aos investimentos privados e a gestão do Banco Mundial. Como assinalaram as organizações sociais se trata de uma estratégia para “converter o Fundo Verde para o Clima em um Fundo Empresarial lucrativo”. Uma vez mais se pretende fazer negocio com o clima e a contaminação do meio ambiente.
Outro exemplo desta mercantilização do clima têm sido o aval da ONU a captura e armazenamento de CO2 como Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, que não pretende reduzir as emissões e que aprofundaria a crise ambiental, especialmente nos países do Sul candidatos a futuros cemitérios de CO2.
Assim, os resultados da Cúpula apontam para mais capitalismo verde. Como indicava o ativista e intelectual sul-africano Patrick Bond: “A tendência a mercantilizar a natureza se converteu em um ponto de vista filosófico dominante na governança mundial meio-ambiental”. Em Durban se repete o roteiro de cúpulas anteriores como a de Cancún 2010, Copenhague 2009… onde os interesses das grandes multinacionais, das instituições internacionais e as elites financeiras, tanto no Norte como no Sul, se contrapõe as necessidades coletivas da gente e ao futuro do planeta.
Em Durban estava em jogo nosso futuro mas também nosso presente. Os estragos da mudança climática já estão tendo seus efeitos: liberação de milhões de toneladas de metano do Ártico, um gás 20 vezes mais potente que o CO2 desde o ponto de vista do aquecimento atmosférico; derretimento dos glaciais e das coberturas de gelo que aumenta o nível do mar. Efeitos que incrementam o número de migrações forçadas. Se em 1995 havia ao redor de 25 milhões de migrantes climáticos, hoje esta cifra dobrou, 50 milhões, e em 2050 pode-se ampliar entre 200 e bilhões de dispersões.
Tudo aponta a que nos dirigimos para um aquecimento global descontrolado superior aos 2º, e que poderia rondar os 4º, para o final do século, o que desencadearia muito provavelmente, segundo os cientistas, impactos inimagináveis , como a subida de vários metros do nível do mar. Nãopodemos esperar até o ano 2020 para começar a tomar medidas reis.
Mas frente a falta de vontade política para acabar com a mudança climática, as resistências não calam. E emulando a Occupy Wall Street e a onde de indignação que recorre a Europa e o mundo, vários ativistas e movimentos sociais têm se encontrado diariamente em um fórum a poucos metros do centro de convenções oficiais sob o lema ‘Occupy COP17’. Este ponto de encontro vem reunindo desde mulheres camponesas que lutam por seus direitos até representantes oficiais de pequenas ilhas-Estados como as ilhas Seychelles, Granada ou Nauru ameaçados por uma subida iminente do nível do mar, passando por ativistas contra a dívida externa que reclamam o reconhecimento e a restituição de uma dívida ecológica do Norte a respeito do sul.
O movimento pela justiça climática assinala como, frente a mercantilização da natureza e os bens comuns, é necessário antepor nossas vidas e o planeta. O capitalismo se mostra incapaz de dar respostas ao beco sem saída a que sua lógica produtivista, de curto prazo e depredadora nos vêm conduzindo. Se não queremos que o clima mude ha que mudar radicalmente este sistema. Mas os resultados de Durban apontam em outra direção. O reconhecido ativista ecologista nigeriano Nnimmo Bassey deixava isso bem claro com estas palavras: “Esta cúpula amplificou o apartheid climático, onde 1% dos mais ricos do mundo decidem que é aceitável sacrificar os 99% restante”.
Tradução Paulo Marques, publicado em http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=6514
Os porquês da fome
por Esther Vivas
Vivemos em um mundo de abundância. Hoje se produz comida para 12 bilhões de pessoas, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), quando no planeta habitam 7 bilhões. Comida, existe. Então, por que uma em cada sete pessoas no mundo passa fome?
A emergência alimentar que afeta mais de 10 milhões de pessoas no Chifre da África voltou colocar na atualidade a fatalidade de uma catástrofe que não tem nada de natural. Secas, inundações, conflitos bélicos… contribuem para agudizar uma situação de extrema vulnerabilidade alimentar, mas não são os únicos fatores que a explicam.
A situação de fome no Chifre da África não é novidade. Somália vive uma situação de insegurança alimentar ha 20 anos. E, periodicamente, os meios de comunicação removem nossos confortáveis sofás e nos recordam o impacto dramático da fome no mundo. Em 1984, quase um milhão de pessoas mortas na Etiópia; em 1992, 300 mil somalenses faleceram por causa da fome; em 2005, quase cinco milhões de pessoas a beira da morte no Malaui, só para citar alguns casos.
A fome não é uma fatalidade inevitável que afeta a determinados países. As causas da fome são políticas. Quem controla os recursos naturais(terra, água, sementes) que permitem a produção de comida? A quem beneficiam as políticas agrícolas e alimentares? Hoja, os alimentos se converteram em uma mercadoria e sua função principal, alimentar-nos, ficou em segundo plano.
Se aponta a seca, com a consequente perda de colheitas e gado, como um dos principais desencadeadores da fome no Chifre da África, mas como se explica que países como Estados Unidos o Austrália, que sofrem periodicamente secas severas, não sofram fomes extremas? Evidentemente, os fenômenos meteorológicos podem agravar os problemas alimentares, mas não bastam para explicar as causas da fome. No que diz respeito a produção de alimentos, o controle dos recursos naturais é chave para entender quem e para quê se produz.
Em muitos países do Chifre da África, o acesso a terra é um bem escaso. A compra massiva de solo fértil por parte de investidores estrangeiros (agroindústria, Governos, fundos especulativos…) têm provocado a expulsão de milhares de camponeses de suas terras, diminuindo a capacidade destes países para se auto-abastecerem. Asim, enquanto o Programa Mundial de Alimentos tenta dar de comer a milhões de refugiados no Sudão, se dá o paradoxo de que governos estrangeiros (Kuwait, Emiratos Árabes Unidos, Coreia…) os compram terras para produzir e exportar alimentos para suas populações.
Asim mesmo, ha que recordar que Somália, apesar das secas recorrentes, foi um país auto-suficiente na produção de alimentos até o final dos anos setenta. Sua soberania alimentar foi arrebatada em décadas posteriores. A partir dos anos oitenta, as políticas impostas pelo Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial para que o país pagasse sua dívida com o Clube de Paris, forçaram a aplicação de um conjunto de medidas de ajuste. No que se refere a agricultura, estas implicaram uma política de liberalização comercial e abertura de seus mercados, permitindo a entrada massiva de produtos subvencionados, como o arroz e o trigo, de multinacionais agro-industriais norte-americanas e europeias, que começaram a vender seus produtos por debaixo de seu preço de custo e fazendo a competição desleal com os produtores autóctonos. As desvalorizações periódicas da moeda somalense geraram também a alta do preço dos insumos e o fomento de uma política de monocultivos para a exportação forçou, paulatinamente, o abandono do campo. Histórias parecidas se deram não só nos países da África, mas também na América Latina e Ásia.
A subida do preço de cereais básicos é outro dos elementos assinalados como detonante da fome no Chifre da África. na Somália, o preço do milho e o sorgo vermelho aumentou 106% e 180% respectivamente em apenas um ano. Na Etiópia, o custo do trigo subiu 85% em relação ao ano anterior. E no Quênia, o milho alcançou um valor 55% superior ao de 2010. Uma alta que converteu estes alimentos em inacessíveis. Mas, quais são as razões da escalada dos preços? Vários indícios apontam a especulação financeira com as matérias primas alimentares como uma das causas principais.
O preço dos alimentos se determina nas Bolsas de valores, a mais importante das quais, a nível mundial, é a de Chicago, enquanto que na Europa os alimentos se comercializam nas Bolsas de futuros de Londres, Paris, Amsterdam e Frankfurt. Mas, hoje em dia, a maior parte da compra e venda destas mercadorias não corresponde a intercâmbios comerciais reais. Se calcula que, nas palavras de Mike Masters, do hedge fund Masters Capital Management, 75% do investimento financeiro no setor agrícola é de caráter especulativo. Se compram e vendem matérias primas com o objetivo de especular e fazer negócio, repercutindo finalmente em um aumento do preço da comida para o consumidor final. Os mesmos bancos, fundos de alto risco, companhias de seguros, que causaram a crise das hipotecas subprime, são quem hoje especula com a comida, aproveitandp-se dos mercados globais profundamente desregularizados e altamente rentáveis.
A crise alimentar em escala global e a fome no Chifre da África em particular são resultado da globalização alimentar a serviço dos interesses privados. A cadeia de produção, distribuição e consumo de alimentos está nas mãos de umas poucas multinacionais que antepõem seus interesses particulares às necessidades coletivas e que ao largo das últimas décadas têm erosionado, com o apoio des instituições financeiras internacionais, a capacidade dos Estados do sul para decidir sobre suas políticas agrícolas e alimentares.
Voltando ao princípio, Por quê existe fome em um mundo de abundância? A produção de alimentos se multiplicou por três desde os anos sessenta, enquanto que a população mundial tão só duplicou desde então. Não estamos enfrentando um problema de produção de comida, mas sim um problema de acesso. Como assinalou o relator da ONU para o direito a alimentação, Olivier de Schutter, em uma entrevista a EL PAÍS: “A fome é um problema político. E uma questão de justiça social e políticas de redistribuição”.
Se queremos acabar com a fome no mundo é urgente apostar por outras políticas agrícolas e alimentares que coloquem no seu centro as pessoas, as suas necessidades, a aqueles que trabalham a terra e o eco-sistema. Apostar pelo que o movimento internacional da Vía Campesina chama a “soberania alimentar”, e recuperar a capacidade de decidir sobre aquilo que comemos. Tomando emprestado um dos lemas mais conhecidos do Movimiento 15-M, é necessário uma “democracia real,já” na agricultura e na alimentação.
*Esther Vivas, do Centro de Estudos sobre Movimentos Sociais da Universidad Pompeu Fabra. Artigo em El País, 30/07/2011.
***Tradução português : Paulo Marques para o blog http://www.economiasocialistads.blogspot.com
A soberania alimentar como alternativa
por Esther Vivas
A globalização neoliberal, em sua trajetória para privatizar todos os âmbitos da vida, fez o mesmo com a agricultura e os bens naturais, submetendo à fome e à pobreza a uma imensa da população mundial. Calcula-se hoje que no mundo há 925 milhões de pessoas famintas, segundo dados da FAO, quando, paradoxalmente, se produz mais alimentos que nunca na História.
Como indica a organização internacional GRAIN, a produção de comida se multiplicou por três desde os anos 60, enquanto a população mundial foi apenas duplicada desde então, mas os mecanismos de produção, distribuição e consumo, ao serviço dos interesses privados, impedem aos mais pobres a obtenção necessária de alimentos.
O acesso, por parte do pequeno campesinato, à terra, à água, às sementes… não é um direito garantido. Os consumidores não sabem de onde vem aquilo que comemos, não podemos escolher consumir produtos livres de transgênicos. A cadeia agro-alimentar se alargou progressivamente, afastando, cada vez mais, produção e consumo; favorecendo a apropriação das diferentes etapas da cadeia por empresas agroindustriais, com a consequente perda de autonomia camponesa e consumidora.
Frente a este modelo dominante do agronegócio, onde a busca do benefício econômico se antepõe às necessidades alimentares das pessoas e ao respeito ao meio ambiente, surge o paradigma alternativo da soberania alimentar. Uma proposta que reivindica o direito de cada povo de definir as suas políticas agrícolas e alimentares, de controlar o seu mercado interno, de impedir a entrada de produtos excedentes através de mecanismos de “dumping”, de promover uma agricultura local, diversificada, camponesa e sustentável, que respeita o território, compreendendo o comércio internacional como um complemento à produção local. A soberania alimentar implica restituir o controlo dos bens naturais (como a terra, a água e as sementes) às comunidades e lutar contra a privatização da vida.
Para além da segurança alimentar
Trata-se de um conceito que vai para além da proposta de segurança alimentar, defendida pela FAO a partir dos anos 70 com o objetivo de garantir o direito e o acesso à alimentação a toda a população. A segurança alimentar não representa um paradigma alternativo ao não questionar o atual modelo de produção, distribuição e consumo, e tem sido, frequentemente, privada de seu significado original. A soberania alimentar, por sua vez, inclui esta proposta: garantir que todos possam comer, ao mesmo tempo em que se opõe ao sistema agro-industrial dominante e às políticas das instituições internacionais que lhe dão apoio.
Atingir este objetivo requer uma estratégia de ruptura com as políticas agrícolas neoliberais impostas pela Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que corroeu a soberania alimentar dos povos a partir dos seus ditames de livre comércio, dos planos de ajuste estrutural, endividamento externo, etc. Frente a estas políticas, é necessário produzir mecanismos de intervenção e de regulamento que permitam estabilizar os preços, controlar as importações, estabelecer cotas, proibir o “dumping” e, em momentos de super-produção, criar reservas específicas para quando estes alimentos faltarem. Em nível nacional, os países devem ser soberanos no momento de decidir o seu grau de auto-suficiência produtiva e priorizar a produção de comida para o consumo doméstico, sem intervencionismo externo.
Afirmar a soberania alimentar não implica um regresso romântico ao passado, mas trata-se de recuperar o conhecimento e as práticas tradicionais, combinando-as com as novas tecnologias e os novos conhecimentos. Não deve consistir, tampouco, numa abordagem localizada, nem em uma “mistificação do pequeno”, mas em repensar o sistema alimentar mundial para favorecer formas democráticas de produção e distribuição de alimentos.
Uma perspectiva feminista
Avançar na construção de alternativas ao atual modelo agrícola e alimentar implica incorporar uma perspectiva de gênero. Trata-se de reconhecer o papel que as mulheres têm no cultivo e na comercialização daquilo que comemos. Entre 60 e 80% da produção dos alimentos nos países do Sul, de acordo com dados da FAO, recai sobre as mulheres. Elas são as principais produtoras de cultivos básicos como o arroz, o trigo e o milho, que alimentam as populações mais empobrecidas do Sul global. Mas, apesar do seu papel chave na agricultura e na alimentação, elas são, junto com as crianças, as mais afetadas pela fome.
As mulheres, em muitos países da África, Ásia e América Latina, enfrentam enormes dificuldades para ter acesso a terra, obter créditos, etc. Mas estes problemas não acontecem somente no Sul. Na Europa, muitas camponesas sofrem de uma total insegurança jurídica, já que a maioria delas trabalha em unidades produtivas familiares, onde os direitos administrativos são propriedade exclusiva do titular da unidade e as mulheres, embora trabalhando nela, não têm direito a ajudas, à plantação, a uma cota-parte, etc.
A soberania alimentar deve romper não somente com um modelo agrícola capitalista, mas também com um sistema patriarcal, profundamente arraigado na nossa sociedade, que oprime e submete as mulheres. Uma soberania alimentar que não inclui uma perspectiva feminista, estará condenada ao fracasso.
A Via Campesina
O conceito de soberania alimentar foi proposto pelo movimento internacional da Via Campesina, no ano 1996, coincidindo com a Cúpula Mundial sobre a Alimentação da FAO, em Roma. A Via Campesina agrupa 150 organizações camponesas de 56 países. Foi constituída em 1993, no início do movimento antiglobalização, e, progressivamente, se converteria em uma das organizações de referência na crítica à globalização neoliberal. Seu ascenso é a expressão da resistência camponesa ao colapso do mundo rural, provocado pelas políticas neoliberais e sua intensificação com a criação da Organização Mundial do Comércio.
A composição de membros da Via é bastante heterogênea, em termos de procedência ideológica e de setores representados (sem terra, pequenos camponeses…); mas todos coincidem em pertencer às parcelas camponesas mais golpeadas devido ao avanço da globalização neoliberal. Uma das suas conquistas foi a de superar, de maneira bastante satisfatória, a lacuna entre os camponeses do Norte e do Sul, articulando uma resistência conjunta ao atual modelo de liberalização econômica.
Desde a sua criação, a Via criou uma identidade “camponesa” politizada, ligação à terra e à produção de alimentos, construída em oposição ao atual modelo do agronegócio e com base na defesa da soberania alimentar. A Via encarna um novo tipo de “internacionalismo camponês” que podemos conceitualizar como “o componente camponês” do novo internacionalismo das resistências, representado pelo movimento altermundialista.
Uma opção viável
Um dos argumentos que utilizam os detratores da soberania alimentar é que a agricultura ecológica é incapaz de alimentar o mundo. Mas, contrariamente a este discurso, vários estudos demonstram que tal afirmação é falsa. Isso foi constatado pelos resultados de uma exaustiva consulta internacional promovida pelo Banco Mundial, em parceria com a FAO, o PNUD, a UNESCO, representantes de governos, instituições privadas, cientistas sociais, etc., concebida como um modelo de consultoria híbrida, com o nome de IAASTD, que envolveu mais de 400 cientistas e peritos em alimentação e desenvolvimento rural durante quatro anos.
É interessante observar, embora o relatório tivesse por trás de si estas instituições, que a conclusão é de que a produção agroecológica garante uma renda alimentar e monetária aos mais pobres , ao mesmo tempo que produz excedentes para o mercado, sendo uma melhor garantia para a segurança alimentar do que a produção transgênica. O relatório do IAASTD, publicado no início de 2009, apostava na produção local, camponesa e familiar, e na redistribuição de terras para as mãos das comunidades rurais. O relatório foi rejeitado pelo agronegócio e foi arquivado pelo Banco Mundial, embora 61 governos o tenham aprovado discretamente, com exceção dos Estados Unidos, do Canadá e da Austrália, entre outros
Na mesma linha, posicionava-se um estudo da Universidade de Michigan, publicado em junho de 2007 pela revista Journal Renewable Agriculture and Food Systems, que comparava a produção agrícola convencional com a ecológica. O relatório concluiu que as granjas agroecológicas eram altamente produtivas e capazes de garantir a segurança alimentar em todo o planeta, contrariamente à produção agrícola industrializada e o livre comércio. As suas conclusões indicavam, incluindo as estimativas mais conservadoras, que a agricultura orgânica podia fornecer, pelo menos, tanta comida quanto a que é produzida atualmente, embora os seus investigadores considerem, como estimativa mais realista, que a agricultura ecológica podia aumentar a produção global de comida em até 50%.
Vários estudos demonstram como a produção camponesa em pequena escala pode ter um elevado rendimento, ao mesmo tempo em que usa menos combustíveis fósseis, especialmente se os alimentos forem comercializados local ou regionalmente. Por conseguinte, investir na produção camponesa familiar é a melhor opção para lutar contra a mudança climática e acabar com a pobreza e a fome, garantindo o acesso aos bens naturais, ainda mais quando ¾ das pessoas mais pobres do mundo são pequenos camponeses.
No âmbito da comercialização, tem-se mostrado fundamental para quebrar com o monopólio da grande distribuição, apostar nos circuitos curtos de comercialização (mercados locais, venda direta, grupos e cooperativas de consumo agroecológico…), evitando intermediários e estabelecendo relações próximas entre produtor e consumidor, baseadas na confiança e no conhecimento mútuo, que conduzam a uma crescente solidariedade entre o campo e a cidade.
Neste sentido, é necessário que as políticas públicas se façam eco das demandas destes movimentos sociais e apóiem um modelo agrícola local, camponês, diversificado, orgânico e que se proíba os transgênicos, se promova bancos de terras, uma lei de produção artesanal, um mundo rural vivo… Finalmente, uma prática política a serviço dos povos e do ecossistema.
*Artigo publicado como epílogo do livro “Qué son los transgénicos” (O que são os Transgênicos) de Jorge Riechmann (RBA Libros, 2011).
** Tradução ao português: Tárzia Medeiros
+ informações: http://esthervivas.wordpress.com/portugues
Esther Vivas
Ano após ano se repete o mesmo ritual: chega o Natal e com ele os cânticos ao consumo e e compra sem limites. Nos dizem que necessitamos mais para ser mais felizes. Mas, isso é certo? Na realidade, e em um contexto de crise ecológica e climática global, de transbordamento dos limites do planeta, de desperdício coletivo…, deveríamos repensar nosso modelo de consumo e avançar no sentido de uma cultura de “ melhor com menos”, combatendo um consumo excessivo, antiecológico, supérfluo e injusto, promovido pelo mesmo sistema capitalista.
Entretanto, mais além da ação individual, que tem um valor demostrativo importante e que aporta coerência a nossa prática cotidiana, é fundamental a ação política coletiva, rompendo o mito de que nossas ações individuais por si mesmas geram mudanças estruturais. No ambito do consumo, por exemplo, podemos participar em grupos e cooperativas de consumo agroecológico, que a partir de um trabalho autogestionado, estabelecem relações diretas entre consumidores e trabalhadores rurais, evitando intermediários, promovendo relações de confiança e levando a cabo um consumo ecológico, solidário e de apoio ao mundo rural.
Mas é fundamental que esta ação política transcenda o âmbito do consumo, ir mais além, e estabelecer alianças entre diferentes setores afetados pela globalização capitalista e atuar politicamente. A situação de crise sistêmica do capitalismo, com suas distintas facetas: ecológica, financeira, alimentar, de cuidados, energética… faz mais necessário que nunca esta ação política coletiva. A criação de alianças entre trabalhadores rurais e urbanos, mulheres, imigrantes, jovens… é uma condição indispensável para avançar para esse “ outro mundo possível” que preconizam os movimentos sociais.
Com este objetivo diferentes organizações estão convocando uma greve de consumo para o próximo 21 de dezembro. Se trata de não adquirir nenhum produto ou serviço durante esse dia para expressar um rechaço claro a um sistema capitalista que nos têm conduzido a uma crise global sem precedentes, e que conta com o apoyo explícito de governos e instituições, mais interessadas em privatizar os serviços públicos, cortar salários e ajudar os bancos e as empresas privadas, que em apoiar quem mais necessita.
Motivos para sair as ruas não faltam, mas sobram.
*Esther Vivas é co-autora d Del campo al plato (Icaria ed., 2009).
**Artígo publicado en El Punt, 18/12/2010.
Traduzido por Paulo Marques para o blog http://www.brasilautogestionario.org
por Esther Vivas*
Frequentemente quando se fala do impacto da crise alimentar e da dificuldade para acessar uma alimentação sã e saudável olhamos para os países do Sul. Na atualidade, 925 milhões de pessoas no mundo passam fome e estas se encontram, majoritariamente, nos países empobrecidos.
Estas circunstancias ocorrem em um período onde se produzem mais alimentos que nunca na história, com um aumento de produção de 2% nos últimos vinte anos enquanto que a população cresce a um ritmo de 1,14%. Portanto, comida existe, mas a crescente mercantilização dos alimentos têm feito que o acesso às mesmas se converta em praticamente impossível para amplas parcelas da população.
Entretanto, mais além do impacto dramático destas políticas agrícolas e alimentares na geração da fome no mundo, ha que assinalar, também, suas consequencias no aumento das mudanças climáticas, a deslocalização alimentar, a crescente descampesinação do mundo rural, a perda de agro-diversidade, etc…, especialmente nos países do sul global, mas também aqui.
Na Catalunha, por exemplo, somente 2,46% da população ativa se dedica a agricultura e esta porcentagem se reduz ano após ano, uma vez que se constata um envelhecimento progressivo do setor, já que o relevo geracional é muito escasso. Se calcula que a incorporação de jovens no campo é dez vezes inferior ao de sete anos atrás. Se em 2001, 478 jovens se somaram a atividade camponesa catalã; em 2008, somente o fizeram 49, segundo dados do sindicato Unió de Pagesos.
O empobrecimento dos camponeses é uma realidade inegável. A renda agrária na Cataluña caiu desde 2001 em 43,7%, situando-se muito abaixo da renda geral. O encarecimento dos custos de produção e a baixa remuneração que os camponeses recebem por seus cultivos seriam algumas das causas principais que explicariam essa tendência.
O sistema agro-industrial têm gerado uma progressiva desvinculação entre produção de alimentos e consumo, favorecendo a apropriação por parte de um punhado de empresas, que controlam cada um dos componentes da cadeia agroalimentar (sementes, fertilizantes, transformação, distribuição), com a conseqüente perda de autonomia dos camponeses.
Para descrever a estrutura do atual modelo de distribuição de alimentos se costuma utilizar a metáfora do “ relógio de areia”, onde umas poucas empresas monopolizam o setor gerando um gargalo da garrafa que determina a relação entre produtores e consumidores. Na atualidade, o diferencial entre o preço pago na origem, ao camponês, e o que pagamos no supermercado se situa em torno de uns 500% em média, sendo a grande distribuição quem fica com o maior lucro. Por esse motivo, os diferentes sindicatos campesinos reclamam uma Lei de Margens comerciais e que lhes pague um preço digno por seus produtos.
Frente a este modelo agrícola, desde metade dos anos 90, diferentes movimentos sociais vêm reivindicando o direito dos povos a soberania alimentar. Uma demanda que implica recuperar o controle das políticas agrícolas e alimentares, o direito a decidir sobre aquilo que comemos, que os bens naturais(água, terra, sementes…) estejam em mãos dos camponeses. Uma proposta que é baseada na solidariedade internacional e que não tem que se confundir com os discursos chauvinistas partidários do “primeiro o nosso”.
Na Catalunha, esta soberania alimentar implica o acesso a terra de quem quer incorporar-se a atividade agrícola, apostar por um banco de terras, e denunciar a crescente especulação com o território. É urgente, como reivindica a plataforma Catalã Somos o que semeamos, uma moratória de cultivo de transgênicos e deixar bem claro que a coexistência é impossível. Catalunha e Aragão são as principais zonas da União Européia onde se cultivam transgênicos, inclusive variedades proibidas em outros países. Faz falta uma nova Política Agrária Comum(PAC), enquanto soberania alimentar, priorizando uma produção, uma distribuição e um consumo de proximidade, um modelo agrícola vinculado a agroecologia, investimentos e serviços públicos e de qualidade no mundo rural e uma legislação sanitária adequada para a transformação artesã e a comercialização local.
Sem um entorno rural e camponês vivo, outro mundo e outro consumo não serão possíveis. Como diz a Via Campesina, hoje “ comer se converteu em um ato político”
*Esther Vivas é autora de ‘Do campo ao prato’ (Icaria ed. 2009). Artíigo publicado no jornal Público (edición de Catalunya)
Tradução para o português: Paulo Marques ( www.brasilautogestionario.org)
Entrevista de Esther Vivas na revista The Ecologist
Esther Vivas é uma velha conhecida de The Ecologist. Agora, junto a Josep Maria Antentas, acaba de publicar o livro Resistências Globais. De Seatle à crise de Wall Street. Em seu foco, desde muito tempo, está o sistema agroalimentar global. Obesidade e fome são conseqüências de um modelo criminoso em grande escala.
Efetivamente, Esther Vivas é bem conhecida do The Ecologist. Por seus artigos de opinião e por seu ativismo. Entre seus trabalhos jornalísticos recentes, destacamos a entrevista com Teresa Forcades. Nela, a conhecida freira beneditina sentencia: “ Estamos em um contexto onde se tomam decisões em níveis cada vez mais distantes da cidadania. Com o Tratado de Lisboa isso será aprofundado. É um processo que vai mais rápido que a consciência que temos do mesmo. No caso da gripe A, têm existido alguns consensos estranhos e uma falta de debate no terreno político, que somente foi rompido um pouco quando saiu a ministra polonesa questionando essas políticas” . Também acontece isso na agroalimentação. As decisões se tomam sem ter em conta as necessidades dos cidadãos e olhando somente os interesses das grandes companhias do setor.
[ Tradução português: Paulo Marques para http://www.brasilautogestionario.org ]
The Ecologist: Aumentam a desnutrição e a obesidade ao mesmo tempo. Estas duas histórias, têm uma mesma origem?
Esther Vivas: A fome e a obesidade são duas caras de uma mesma moeda, de um sistema agroalimentar privatizado e mercantil. Hoje, a produção agrícola já não responde a nossas necessidades alimentares mas sim está subordinada aos interesses econômicos da indústria agroalimentar. Esta lógica nos têm conduzido a uma situação de grave crise alimentar, onde uma de cada seis pessoas no mundo passa fome, apesar de que se produz mais que em qualquer outro período da história, mas, se você não têm dinheiro suficiente para pagar o preço dos alimentos, não comes. Isto é o que aconteceu com o estouro da crise alimentar dos anos 2007 e 2008, com um aumento espetacular dos preços.
Uma situação de fome que persiste na atualidade. Ao mesmo tempo, os alimentos se produzem, se transformam e se distribuem ao menor custo empresarial possível, explorando todos os atores que participam na cadeia comercial da origem ao fim e estabelecendo um alto diferencial entre o preço pago na origem e no destino.
Isto repercute também na qualidade dos alimentos, já que seu objetivo já não é alimentar-nos de uma forma saudável mas sim reduzir seu custo produtivo. A maior parte dos alimentos que comemos estão altamente processados, com uma quantidade importante de aditivos ( colorantes, edulcorantes, conservantes), transgênicos…e isto repercute em nossa saúde, gerando graves problemas cardiovasculares, de colesterol, obesidade, alergias, entre outros. E são, majoritariamente, as famílias com menores recursos econômicos que mais sofrem as conseqüências deste modelo alimentar.
The Ecologist: Determinados estudos científicos mostram que comer produtos refinados, como açucar, saturado de gorduras… produtos que estão carregados de resíduos tóxicos… expõe nosso organismo a substancias químicas que podem atuar como disruptores hormonais que inibem a capacidade de nossos corpos de auto-regular seu peso. Mas, na realidade, os melhores alimentos não são os mais caros… A soberania alimentar é algo mais que o direito a comer o suficiente para sobreviver?
Esther Vivas: Efetivamente. A soberania não só exige que todo o mundo tenha acesso aos alimentos, senão que também proponha um modelo de produção, distribuição e consumo que situe em seu centro o pequeno produtor e nosso direito a comer alimentos sãos e saudáveis.
A soberania alimentar põe de ponta cabeça a lógica deslocalizadora, intensiva, quilométrica, petrodependente…que rege o sistema agroalimentar global, pondo em questão a privatização dos bens naturais ( a água, a terra, as sementes…) e o monopólio empresarial em toda a cadeia alimentar, assim como a convivência política e institucional com a mesma.
A soberania alimentar exige terra para quem nela trabalhe, sementes para quem as cultiva, alimentos saudáveis e de proximidade para quem os consome. Em suma, se reapropriar dos mecanismos de produção e distribuição de alimentos, que nunca deveriam nos ser espoliados.
The Ecologist: Se tanto a esquerda com seus modelos anti-tradicionalistas e a direita com seus modelos neoliberais têm colocado em questão o papel da família… Como as crianças podem aprender a alimentar-se se não há vida em família, alimentação em família?
Esther Vivas: O modo como nos alimentamos também têm sofrido uma mudança radical. A alimentação de nossos avós pouco têm a ver com a nossa, e tampouco tem passado tantos anos. Temos perdido em diversidade agroalimentar, conhecimento e qualidade e somos muito pouco conscientes disso. Isto tem sua face mais dramática nos países do Sul gravemente golpeados pela crise alimentar, ainda que nos afete aqui no Norte.
Nos vendem a ilusão de que nos supermercados podemos encontrar uma ampla gama de alimentos. Mas a realidade é outra, muito distinta. No estado espanhol, sete empresas controlam 75% da distribuição de comida e essa tendência têm crescido, e em quase todos os supermercados encontramos os mesmos produtos. Onde está, então a tal variedade? Temos que recuperar o controle da produção, a distribuição e o consumo de alimentos e o saber alimentar.
The Ecologist: O direito internacional garante a soberania interna e externa de um Estado. Mas, quem garante a sua soberania alimentar?
Esther Vivas: A soberania alimentar deveria estar garantida pelos Estados, mas hoje em dia os ditames da Organização Mundial do Comércio, do Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, com o beneplácito dos governos de distintos países, deixam a economia, a alimentação, o bem estar, a saúde, o meio ambiente… nas mãos do mercado. É necessário e urgente mudar essas políticas, mas para faze-lo é fundamental uma correlação de forças favoráveis em mãos dos “de baixo”, as e os resistentes. Há que trabalhar nesta direção.
The Ecologist: O que chega ao supermercado, as ofertas da semana, o que no final chega a nosso prato…Do que depende? Ou melhor dito, quem decide?
Esther Vivas: Se avaliamos que a população camponesa tende a desaparecer, que no Estado Espanhol tão só 5% da população ativa trabalha no campo, que se vive uma crescente “descamponização” …Então, de quem depende nossa alimentação? A resposta é clara: multinacionais como Cargill, Monsanto, Nestlé, Carrefour, Alcampo, entre muitas outras, acabam determinando o que se consome. Como, de onde provém e o que se paga. Portanto, nosso direito a alimentação, como temos visto com a crise alimentar global, está gravemente ameaçado.
The Ecologist: A Generalitat1 está proibindo que nas escolas entre “comida lixo” enquanto que em seus meios de informação fazem publicidade de todo tipo de produtos supostamente alimentares muito nocivos para a infância… O correto não seria fazer como na Alemanha e Itália em cujas escolas já existe alimentação ecológica em grande porcentagem, de caráter local e camponesa?
Esther Vivas: Poderíamos dizer que existe uma dupla moral. Desde as administrações públicas se faz propaganda da agricultura ecológica, mas suas políticas agrárias se subordinam aos interesses da indústria agroalimentar. Colocamos um exemplo: Na Catalunha, ao longo do ano de 2009, a Plataforma “Som lo que Sembrem” recolheu mais de 100 mil assinaturas impulsionando uma iniciativa Legislativa popular contra os transgênicos, mas quando esta chegou ao Parlamento Catalão foi rechaçada . Os parlamentares se agarraram aos interesses empresariais pró-transgênicos.
As regiões da Catalunha e Aragão são as zonas da Europa com a maior produção de transgênicos, inclusive com variedades proibidas em outros países europeus. A administração pública pode seguir falando de agricultura ecológica, mas se não for proibido os transgênicos, cedo ou tarde, com essa falsa co-existência, a agricultura convencional e ecológica desaparecerão.
As experiências dos restaurantes ecológicos na Itália são iniciativas que temos que ter em conta e seguir, uma vez que são uma das principais fontes de viabilidade da agricultura ecológica e camponesa na Itália. Tomemos nota.
Entrevista realizada por Pablo Bolaño e publicada na revista The Ecologist, nº41.
1/ Generalitat é a denominação do governo da Catalunha.
Consumo agroecológico, uma opção política
por Esther Vivas
Os grupos e cooperativas de consumo agroecológico compõe uma realidade cada dia mais presente a nível local. Ainda que se trate de experiências que, em cifras totais, somam um número reduzido de pessoas, demonstram que é possível levar a cabo outro modelo de consumo que tenha em conta critérios sociais e meio-ambientais.
Estes coletivos agrupam pessoas de um mesmo território ( bairro, cidade…) com o objetivo de levar a cabo um consumo alternativo, ecológico, solidário com o mundo rural, re-localizando a alimentação e estabelecendo relações diretas entre consumidor e produtor a partir de circuitos curtos de comercialização. Estes núcleos se constituem majoritariamente nas grandes cidades onde existe uma maior distancia entre consumidores e produtores/camponeses e seu formato acostuma a ser o de associação ou cooperativa.
No presente artigo chamaremos estes coletivos: “grupos e cooperativas de consumo agroecológico”. A pesar de que muitos deles se auto-definam a favor do consumo de produtos ecológicos, consideramos que sua prática cotidiana está inserida mais nos princípios da agroecologia, com uma carga não só ecológica mas também social e política.
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A mudança climática é, hoje em dia, uma realidade inegável. O eco político, social e midiático da Conferência de Copenhague, em dezembro de 2009, foi uma boa prova disso. Uma Cumbre que mostrou a incapacidade do próprio sistema capitalista de dar uma resposta crível a uma crise que ele mesmo criou. O capitalismo verde se coloca na questão da mudança climática, aportando uma série de soluções tecnológicas (energia nuclear, captação do carbono da atmosfera para seu armazenamento, agrocombustíveis, etc…) que gerariam maiores impactos sociais e meio-ambientais. Se trata de soluções falsas à mudança climática que tentam esconder as causas estruturais que nos conduzem a situação atual de crise e que buscam fazer negócio com a mesma, uma vez que propõe a contradição entre cálculo de curto prazo do capital e os ritmos longos do equilíbrio ecológico.
Por Esther Vivas
Neste contexto, é urgente um movimento capaz de desafiar o discurso dominante do capitalismo verde, assinalar o impacto e a responsabilidade do atual modelo de produção, distribuição e consumo capitalista e vincular a ameaça climática global com os problemas sociais cotidianos. Copenhague têm sido até agora a maior expressão do movimento pela justiça climática, coincidindo justamente com o décimo aniversário das mobilizações contra a OMC em Seattle. Um protesto que, sob o lema” Mudamos o sistema, não o clima”, expressa esta relação difusa entre justiça social e climática, entre crise social e crise ecológica. Mas o êxito dos protestos em Copenhague contrasta com a debilidade das manifestações a nível mundial, com algumas exceções como Londres.
A crise atual apresenta a necessidade urgente de mudar o mundo de base e fazê-lo desde uma perspectiva anticapitalista e eco-socialista radical. Anticapitalismo e justiça climática são dois combates que tem que estar estritamente unidos. Qualquer perspectiva de ruptura com o atual modelo econômico que não leve em conta a centralidade da crise ecológica está fadada ao fracasso e qualquer perspectiva ecologista sem uma orientação anticapitalista, de ruptura com o sistema atual, ficará na superfície do problema e ao final pode acabar sendo um instrumento à serviço das políticas de marketing verde.
Frear a mudança climática implica modificar o atual modelo de produção, distribuição e consumo. Os retoques superficiais e cosméticos não valem. As soluções a crise ecológica passam por tocar os cimentos do atual sistema capitalista. Se queremos que o clima mude, é necessário mudar o sistema. Daí a necessidade de ter uma verdadeira perspectiva eco-socialista, ou eco-comunista como assinalava Daniel Bensaid em um de seus últimos artigos.
Assim mesmo, se deve combater as teses do neo-malthusianismo verde que culpabilizam os países do sul por suas altas taxas de população e que buscam controlar o corpo das mulheres, impedindo o direito a decidir sobre nosso corpo. Lutar contra a mudança climática implica enfrentar a pobreza: a maior desigualdade social, mais vulnerabilidade climática. É necessário reconverter setores produtivos com graves impactos sociais e ambientais (indústria militar, automobilística, extrativistas, etc…), criando emprego em setores sociais e ecologicamente justos como a agricultura ecológica, serviços públicos(sanitários, educativos, transporte), entre outros.
Acabar com a mudança climática implica apostar pelo direito dos povos a soberania alimentar. O modelo agroindustrial atual(deslocalizado, intensivo, quilométrico. Petro-dependente) é um dos máximos geradores de gases de efeito estufa. Apostar por uma agricultura ecológica, local e camponesa e por circuitos curtos de comercialização permitem, como diz a Via Campesina, esfriar o planeta. Assim mesmo, há que integrar as demandas dos povos originários, o controle de suas terras e bens naturais, e sua cosmovisão e respeito a “Pachamama”, a “mãe terra”, e a defesa do “bem viver”. Valorizar estas contribuições que propõe um novo tipo de relação entre humanidade e natureza é chave para enfrentar a mudança climática e a mercantilização da vida e do planeta.
Desde uma perspectiva Norte-Sul, justiça climática implica a anulação incondicional da dívida externa dos países do Sul, uma dívida ilegal e ilegítima, y reivindicar o reconhecimento de uma dívida social, histórica e ecológica do Norte em relação ao sul resultado de séculos de espólio e exploração. Em casos de catástrofe, é necessário promover mecanismos de “ auxílio popular”. Temos visto como a mudança climática aumenta a vulnerabilidade dos setores populares especialmente nos países do Sul. Os terremotos no Haiti e Chile são dois dos casos mais recentes. Frente a estas ameaças são necessárias redes de solidariedade internacional de movimentos sociais de base que permitam uma canalização da ajuda imediata e efetiva das populações locais. A iniciativa não pode ficar nas mãos de um “ humanitarismo” internacional vazio de conteúdo político.
A luta contra a mudança climática passa por combater o atual modelo de produção industrial, deslocalizado, “just on time”, massivo, dependente de recursos fósseis, etc… As burocracias sindicais seguem e legitimam as políticas do “capitalismo verde” com a farsa de que as “tecnologias verdes” criam emprego e geram maior prosperidade. É necessário desmontar este mito. A esquerda sindical deve colocar em xeque o atual modelo de crescimento sem limites, apostando em outro modelo de “desenvolvimento” que esteja em consonância com os recursos finitos do planeta. As reivindicações ecologistas e contra as mudanças climáticas tem que ser um eixo central do sindicalismo combativo. Os sindicalistas não podem ver os ecologistas como seus inimigos e vice-versa. Todas e todos sofremos as consequências das mudanças climáticas e é necessário que atuamos coletivamente.
É falso pensar que podemos combater as mudanças climáticas só a partir da mudança de atitudes individuais, e ainda mais quando a metade da população mundial vive no “subconsumo crônico”, e também é falso pensar que podemos lutar contra a mudança climática somente com respostas tecnológicas e científicas. São necessárias mudanças estruturais nos modelos de produção de bens, de energia, etc… Nesta direção, as iniciativas que desde o local propõe alternativas práticas ao modelo dominante de consumo, produção, energético… têm um efeito demonstração e de conscientização que é fundamental apoiar.
Por sua natureza, falar de como enfrentar a mudança climática implica discutir estratégia, auto-organização, planificação e as tarefas que, aqueles e aquelas que como nós se consideram anticapitalistas, temos pela frente.
Síntese da intervenção de Esther Vivas no 16º Congresso Mundial da 4ª Internacional em Newport, Bélgica, março 2010.
Tradução de Paulo Marques para http://www.brasilautogestionario.org
Viver sem supermercados
por Esther Vivas
Ir comprar em um supermercado se tornou uma prática cotidiana. De fato cerca de 80% de nossas compras são feitas nas grandes cadeias de distribuição como Carrefour, Alcampo, Eroski, Corte Inglês e Mercadona, etc… Ainda que comemos e consumimos diariamente, de maneira frequente o fazemos mediante a compra em supermercados, poucas vezes paramos para pensar nas conseqüências que este modelo tem para todos aqueles que participam na cadeia de comercialização: campesinos, trabalhadores, consumidores, comercio local. Agora pode ser um bom momento para pautarmos estas questões.
Alguns impactos
A concentração empresarial em cada um dos setores da cadeia agro-alimentar está aumentando e o setor da distribuição não é uma exceção. A dinâmica na Europa, por exemplo, aponta uma tendência ascendente. Na Suécia, três cadeias de supermercados controlam 95,1% do mercado, na Dinamarca três cadeias monopolizam 63%, e na Bélgica, Áustria e França umas poucas companhias dominam mais de 50%. Cada dia temos menos portas de acesso aos alimentos, uma vez que o produtor tem menos opções para chegara até nós. O poder da indústria agro-alimentar é total e nossa alimentação é determinada por seus interesses econômicos.
Este modelo de distribuição visto no detalhe, que se generalizou nos últimos cinqüenta anos no Estado Espanhol, comporta um empobrecimento generalizado da atividade campesina, a homogeinização daquilo que consumimos, a precarização dos direitos trabalhistas tanto em seus centros comerciais como naqueles que os provém, a perda do comércio local, a promoção de um modelo de consumo insustentável e irracional. Vejamos algumas cifras:
O diferencial entre o preço de um produto na origem( pago ao campesino) e no destino ( o que pagamos em um “super”) está numa média de 490%, segundo cifras do Sindicato campesino COAG, mas em relação a alguns alimentos este pode superar os 1.000%, como é o caso das batatas, os tomates, os pepinos e as cenouras. Enquanto é a grande distribuição quem fica com os lucros. Esta situação comporta um crescente empobrecimento da população campesina, com uma diminuição anual de sua renda em 26% nos últimos cinco anos. Com estes dados não nos surpreende que a cada três minutos na Europa desapareça uma área agrícola, segundo dados da Via Campesina, já que os pequenos produtores não podem competir com agro-indústria.
No âmbito do trabalho, o trabalhador está submetido a ritmos de trabalho intensos, tarefas repetitivas e pouca autonomia de decisão, que comporta enfermidades, como o stress, o esgotamento, as dores crônicas nas costas e nas cervicais, etc… Também , os horários de trabalho altamente flexíveis, em função dos interesses produtivos da empresa, dificulta que se concilie a vida no trabalho com a vida social e familiar, fazendo com que o trabalhador chegue a perder inclusive o controle sobre seu tempo livre.
O impacto no pequeno comércio é devastador. Se no ano de 1998 havia no Estado Espanhol 95 mil lojas, em 2004 esta cifra se reduziu a 25 mil. O comércio tradicional de alimentos vêm sofrendo uma erosão constante e incontrolável desde os anos 80, chegando a ser nos dias de hoje quase residual.
Alternativas
Todavia, podemos viver sem supermercados? Os grupos e as cooperativas de consumo agro-ecológico, a compra direta dos campesinos, o comércio local, as cestas a domicílio, ir ao mercado… são algumas opções alternativas que implicam um modelo de comercialização de proximidade, estabelecendo uma relação direta e solidária entre o campesino/o campo e o consumidor/ a cidade. Se trata de opções de compra que estão em crescimento. Se antes do ano 2000 na Catalunha tão só existiam dez grupos de consumo ecológico, hoje em dia esta cifra chega quase a uma centena.
Esta ação coletiva no âmbito do consumo é fundamental para começar a mudar dinâmicas e chegar a mais pessoas. Freqüentemente nos falam de nosso poder individual como consumidores, mas ainda que a ação individual aporte coerência e é demonstrativa, por si só bem poucas coisas poderá mudar. A perspectiva política é chave. Por exemplo, eu posso formar parte de uma cooperativa de consumo e optar pela compra de alimentos ecológicos, mas se não proibirem os transgênicos chegará o dia em que tanto a agricultura convencional como a ecológica estarão contaminadas, fruto de uma co-existência impossível. Por tanto, faz falta mobilizar-nos, sair às ruas e exigir que queremos políticas agrícolas e alimentares que garantam um consumo saudável, respeitoso com a natureza e que leve em conta os direitos dos campesinos e dos trabalhadores.
A lógica capitalista que impera no atual modelo agrícola e alimentar é a mesma que afeta outros âmbitos de nossas vidas: a privatização dos serviços públicos, a especulação imobiliária, a deslocalização empresarial, a precariedade no trabalho. Mudar o atual sistema agro-alimentar implica uma mudança radical nos paradigmas. E para faze-lo a ação política e a criação de alianças como outros setores sociais( campesinos, trabalhadores, ecologistas, feministas…) é imprescindível.
Esther Vivas é co-autora do livro Supermercados, no gracias (Icaria editorial, 2007).
Artígo publicado no semanario La Directa, nº 171. Traduzido por Paulo Marques para o blog http://www.brasilautogestionario.org
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